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O Corpo que sofre por uma mente adoecida

Transtornos mentais como iconoclastas para a igreja

Tenho uma memória ruim, especialmente quando se trata de datas e nomes. Não me lembro de aniversários de amigos e familiares facilmente e preciso perguntar o nome de uma pessoa algumas vezes até que fique gravado em minha mente. Uma data, porém, marca-se de forma distinta em minha lembrança. Dia das mães de 2014, um domingo. Onze de maio. A minha memória sempre foi fraca, mas essa data marcou o início de um período que dividiu minha história e, às vezes para meu próprio benefício, deixou minha capacidade de recordar ainda mais afetada.
Quando olho para trás, é como se todo aquele ano, inclusive o que se passou nos meses anteriores, fosse como um livro lido há muito tempo. Um livro sobre a história de outra pessoa, uma história daquelas que você só consegue parar de ler quando as páginas chegam ao fim, com palavras que consomem seus pensamentos e te fazem digerir o que foi dito por dias a fio, seja pelo gosto amargo que fica, seja pela profundidade do abismo que evoca. Um livro lido na adolescência, que você carrega em seu coração até a vida adulta, mas do qual não lembra muito bem e com certeza se surpreenderia se o lesse novamente. Foi o livro que mudou ou foi o leitor? Toda vez que volto meus olhos para esse período, me reconheço e também me espanto pelo quanto já caminhei desde lá, o quanto Deus foi bom mesmo quando a vida ficou mais difícil.
Revisitar aquele dia, aquele ano, é uma tarefa que me consome e provoca da mesma forma. Mas não é a história de outra pessoa e as páginas não chegaram ao fim. Elas ainda estão sendo reveladas, assim como seu Autor, que se revela a mim a cada dia, seja nas linhas da vida que escreveu para mim, seja no Livro que me deixou de presente, este já finalizado. Graças a Deus, porém, aquele ano, sim, acabou e de certa forma muito do que trouxe consigo.
A memória piorada, porém, foi uma das coisas que ficaram, apesar de sua causadora ter sido devidamente tratada para fora da minha mente. A depressão deixou marcas em meu cérebro, em meu coração, minha história, meu marido (então noivo) e família que nunca irão embora. A maioria delas é agridoce, porque “em tudo damos graças” e, apesar da agonia, o Senhor transformou aquele período em uma das oportunidades mais reais do que significa “chorar com os que choram”, não apenas em minha vida, mas na vida do Corpo que cuidou de mim e sofreu comigo enquanto minha mente padecia.
Não é exagero dizer que só estou aqui hoje porque Jesus usou da igreja local para cuidar de mim de formas muito reais quando eu não podia mais, seja nos piores dias, para tomar um banho e garantir que eu me alimentasse corretamente, seja para ter paciência com minhas fragilidades expostas, para demonstrar amor, muito amor, amor restaurador, quando tudo em mim era desgosto e apatia. Eu não me lembro de muita coisa, mas as mais preciosas são, por exemplo, a lembrança de uma amiga que pela providência divina ficou desempregada no mesmo período em que eu estava doente e dedicou seus dias a ficar comigo, me acompanhar nas coisas mais ordinárias, quando ninguém mais tinha como.
Posso lembrar também das reuniões de jovens das quais queria fugir, do medo da aglomeração das pessoas, da compaixão do meu então noivo com minha fragilidade, mas sua sabedoria em me ajudar a não me entregar a ela. Eu não me lembro de muito, mas eu me lembro dessas misericórdias.
E elas não foram baratas. Aquelas pessoas, meus irmãos e irmãs, tiveram que abdicar de muito conforto para me acompanhar (suportar, com certeza) durante aqueles longos meses. Abriram mão de dinheiro, de tempo, de “saber o que fazer” e ter a “coisa certa pra falar” para simplesmente “chorar com os que choram”. Se a mente hoje está curada, foi porque o Corpo a encontrou em sua dor. E a sentiu.
Estamos tão acostumadas com o provérbio que diz “em todo tempo ama o amigo, e na angústia se faz o irmão”, que não paramos para avaliar o custo da amizade cristã, que ultrapassa a linha daquilo que é camaradagem e coloca-se no mais íntimo e rudimentar: família. A adversidade transforma seus amigos em sua família. Ou melhor, a adversidade, para o cristão, revela quem é sua família e qual é o sangue que os une: a Igreja comprada pelo sacrifício de Jesus Cristo.
O testemunho dessas linhas é constatação desta verdade. A igreja local foi um dos principais meios de graça em minha vida em meio à tormenta da doença mental. Não foi o único e não foi perfeito, mas foi essencial. Não foi institucionalizado, não foi “programado”. Foram pessoas que aceitaram o chamado de “carregar a carga uns dos outros” de maneira visível, radical, desconcertante até.

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação; Que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus.
2 Coríntios 1.3,4

O desafio que gostaria de propor para você, a partir dessa leitura, é uma pergunta que faço a mim mesma, vez ou outra: eu estaria disposta a servir outros em necessidade como eu fui servida? Você está disposta a sofrer (mesmo) pelas dores dos seus irmãos na igreja? A ser levada para os quartos escuros da nossa experiência humana, para os momentos de desconcertante nudez (física, espiritual, emocional) que o comando de “carregar as cargas uns dos outros” exige?
Acredito que esse seja um dos trabalhos mais iconoclastas da vida cristã em comunidade. Ele expõe ídolos, e a lista poderia ser maior, mas os três explorados abaixo são, creio, os mais elementares no processo da igreja local quando esta é desafiada a cuidar de membros com transtornos mentais:

1. O ídolo do conforto

Creio que esse seja um dos maiores ídolos da igreja moderna em vários aspectos. Para o cuidado com os que sofrem, porém, ele costuma mostrar a sua face mais feia: a da indiferença. A idolatria ao conforto costuma se manifestar de maneiras muito sutis e por isso ela é tão difícil de ser combatida, especialmente porque o tipo de conduta que ela produz normalmente se esconde por trás de justificativas bastante convincentes, ainda mais quando os cuidados com pessoas em sofrimento se provam tão desgastantes. Sempre achamos que “aquela pessoa” deveria ser ouvida pelo pastor, líder de ministério ou aconselhador “oficial” da igreja (se é que essa figura exista) e que ela não é “nossa responsabilidade”. Ou, então, justificamos nossa falta de envolvimento (ou superficialidade) com a fase de vida em que estamos, com filhos pequenos, com faculdade e trabalho, com nossos próprios problemas que mal damos conta de suportar. Sempre há alguma justificativa para não nos sacrificarmos pelo próximo. Jesus não deu nenhuma. Ele, pouco antes de fazer o máximo sacrifício, disse aos seus discípulos:

Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.
João 13.34,35

“Como eu vos amei” é o filtro para definir sua conduta em servir ao irmão pelo qual o sangue do próprio Cristo foi derramado.

2. O ídolo do tempo

O ídolo do tempo está intrinsecamente ligado ao ídolo do conforto, especialmente naquilo que podemos chamar de “cuidado apressado”. Ele começa com uma abordagem puramente pragmática do acompanhamento, que visa, essencialmente, “resolver o problema”, e o mais rápido possível. Normalmente, quando a igreja tem essa mentalidade, os irmãos com lutas emocionais e psiquiátricas chegam ao conhecimento da comunidade em situação de remediação, quando o problema não pode mais ser ignorado (é o famoso “a bomba estourou”). E como as ignorâncias costumam andar de mãos dadas, é nessas horas que o ressentimento dá as caras. A pressa em cuidar dos que sofrem (para que melhorem, para que busquem ajuda profissional, para que parem de sobrecarregar a igreja, etc) machuca tanto quem está sofrendo quanto quem está cuidando. Uma abordagem comunitária e paciente do cuidado, por outro lado, entende que não é apenas o pastor da igreja que deve ser responsável por “carregar a carga” de todo mundo, ouvir todos os problemas, saber todas as respostas, e que pessoas diferentes têm trajetórias diferentes, algumas mais demoradas que outras, algumas crônicas e outras passageiras. Um dos maiores exemplos de como não cair na mentira idólatra do pragmatismo quando cuidamos dos que sofrem é a interação de Cristo com Maria e Marta quando Lázaro morre. Jesus chega “atrasado” e é recebido pelas irmãs, cada uma a seu modo, mergulhadas em dor e dúvida. Em nenhum dos diálogos, porém, ele parece se apressar para “resolver o problema” da morte de Lázaro, nem usa seu poder de ressuscita-lo como argumento para fazê-las parar de chorar e seguir em frente (leia mais sobre isso aqui).

3. O ídolo da sabedoria

Pode parecer estranho colocar a sabedoria como um ídolo, mas o coração humano tem a capacidade de transformar qualquer coisa em objeto de culto (vide Salomão). Esse, talvez, é o ídolo mais perigoso, pois costuma ser a junção dos dois acima com uma fina camada de falsa piedade. Ele é o ídolo do “eu sei”; eu sei o que falar, eu sei o que você está sentindo, eu sei que livro você tem que ler, eu sei que você tem que fazer para sair dessa, eu sei o que você está entendendo errado sobre Deus, eu sei por que você não melhora, eu sei, eu sei, eu sei. Irmão e irmã que me lê nesse momento, você não sabe. De fato, nem a pessoa que está sofrendo sabe. Só Deus sabe. Só Ele é capaz de ir ao mais íntimo, ao mais rudimentar da dor, só Ele é chamado de Consolador.

Não sejas demasiadamente justo, nem demasiadamente sábio; por que te destruirias a ti mesmo?
Eclesiastes 7.16

Neste conselho, o sábio não está incentivando o seu ouvinte a não buscar a sabedoria ou a justiça, mas a não considerar que “já a tenha encontrado”, de forma a pensar que saiba todas as respostas da vida. O professor de Eclesiastes ensina seu aluno que esse tipo de atitude “destrói a si mesmo”, e, com certeza, poderíamos dizer que destrói também aqueles a quem este deseja impor sua “sabedoria perfeita”, pois a idolatria do “eu sei” coloca uma barreira intransponível para a compaixão real. Ela dissolve qualquer possibilidade autêntica de chorar com os que choram. Veja bem, Jesus, o Verbo encarnado, é o único que realmente poderia ter dito “eu sei” e, ainda assim, ele simplesmente chora com Maria. Quão arrogante de nós, então, imaginar que nossas próprias palavras seriam suficientes para fazer com que o sofrimento dos nossos irmãos desapareça. Na verdade, derrubar o ídolo da sabedoria é uma das coisas mais libertadoras no cuidado com os que sofrem. Você não é mais responsável por “dizer a coisa certa” que vai resolver definitivamente aquele problema.
Quando ajudamos aqueles que sofrem, nossa idolatria ao conforto nos deixa programados para evitar o silêncio ou preservá-lo a qualquer custo. Quando ajudamos aqueles que sofrem, nossa idolatria ao tempo nos leva a ressentir a falta de reação positiva aos nossos cuidados (como se as pessoas fossem máquinas que reagem exatamente da mesma forma a partir de determinados estímulos ou palavras). Quando ajudamos aqueles que sofrem, nossa idolatria à sabedoria nos impede de genuinamente sofrer com os que sofrem.
Os transtornos mentais derrubam ídolos da igreja e são desafios muito reais para o Corpo de Cristo. Que eles sejam oportunidades de sermos conhecidos como seus discípulos, “por amarmos uns aos outros, como eu vos amei”.

Escrito por -

Cecilia tem 29 anos, é casada com o Guilherme há sete e mãe do Thomas e da Maria. É idealizadora do Benditas e tradutora. Membro da Igreja Batista Reformada de São Bernardo do Campo, Brasil.

3 Comentários

  • Leidiene Alves

    Lendo este artigo sobre a mente doente, me sinto chateada com uma pessoa na igreja que critica as vezes dizendo que devo cuidar do meu emocional para não atrapalha minha vida espíritual, mas não e algo que faço pq quero , tem dias que estou ótima ,mas em outros só quero ficar quieta sem falar e me sinto fraca e não vejo nela uma ajuda ...

  • Nádia Ferreira

    Esse artigo precisa ser espalhado. Doenças mentais existem e só sabe quem passa. A igreja precisa ser igreja.

  • Depressão é uma doença e deveria ser tratada como tal pela comunidade cristã. Ainda há muito preconceito trazendo julgamento de que a causa da depressão é um fator espiritual. Porém, muito ao contrário disso, a depressão pode ser a causa de um grande afastamento espiritual. Só quem passa pelas dores internas, questionamentos, desertos e dias na cor "cinza" é que poderá de fato entender um depressivo que passa por esta situação. Dificilmente uma pessoa com a mente sadia conseguirá compreender tais fardos. Creio que a abordagem deva ser por meio do afeto e da atenção em primeiro lugar e em consequência dessa abordagem, o compartilhar da graça infinita de Deus para conosco, por meio de Cristo Jesus. Toda Igreja local deveria ter um grupo de apoio especial aos depressivos, pois esta doença já está no ranking da doença do século. Assunto complexo e muito bem explorado pela autora.

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