Mulheres, mães e mártires: Perpétua e Felicidade
A arte de narrar acontecimentos pela escrita é uma das invenções mais remotas e, ao mesmo tempo, mais benéficas à humanidade. Por meio da literatura, as pessoas acessam realidades e experiências que divergem das suas, podendo despertar à reflexão e à consequente transformação dos seus valores e visões de mundo.
No que tange à literatura cristã, admite-se que foi pelas mãos de uma jovem mulher que nasceu uma das primeiras obras biográficas do início da Era Cristã, a qual descreve a importante participação de mulheres em meio aos cristãos primitivos, muitas vezes perseguidos por assumirem seu testemunho de fé. Este feito foi extremamente relevante para a construção de referenciais, modelos de condutas e práticas de devoção imitados pelos cristãos e, sobretudo, pelas cristãs ao longo dos séculos. A narrativa, rica em detalhes, aborda aspectos femininos importantes como a maternidade, a firmeza dos cristãos encarcerados às vésperas da morte brutal na arena, além de visões e sonhos sobrenaturais que serviram de conforto e encorajamento para muitos. (1)
A referida obra denomina-se A Paixão de Perpétua e Felicidade, registrada num diário com os relatos do princípio do cárcere até a execução sumária ad bestias (2) de Víbia Perpétua, seus escravos Felicidade, Revocato, Saturnino e Secundino, todos moradores da cidade de Cartago na África (atual região da Tunísia), aproximadamente em 202 d.C. Posteriormente, o diácono Sáturo, que os havia catequizado, entregou-se voluntariamente à prisão, sofrendo junto com seus irmãos por amor a Cristo.
Antes de ser executada, Perpétua entregou seus registros a um membro desconhecido da comunidade. Este cuidou em elaborar uma introdução reverenciando a fé inabalável daqueles mártires e finalizou a descrição da condenação, realizando o desejo da escritora de que o conteúdo fosse levado ao conhecimento de todos.
No terceiro século da Era Cristã, a sociedade romana estava irritada com o avanço do cristianismo e considerava os seguidores do Caminho como opositores por não aceitarem sacrificar-se aos deuses da religião romana e, ao mesmo tempo, por defenderem a crença pública num Único Deus. Neste contexto de perseguição à fé cristã, o imperador Sétimo Severo decretou a pena de morte aos que repudiavam o paganismo. Enquanto celebrava um culto em sua casa, Perpétua foi apreendida juntamente com outros irmãos da comunidade, sendo condenados a morrer de maneira exemplar, inibindo assim o avanço da nova religião cristã e aplacando desta forma a ira das divindades romanas.
Ao examinar os escritos de Perpétua, o leitor é transportado a um cenário de angústia e intenso conflito. Isto porque acompanha-se a história de uma mulher encarcerada, com apenas vinte e dois anos de idade, casada, mãe de um bebê de colo, instruída em vasta educação e pertencente à família estimada na sociedade local. Poderia ter recusado a travessia de tamanho suplício e negar sua profissão de fé, tendo em vista o conforto que lograva. Todavia, Perpétua ambicionava recompensa muito maior, carregava consigo a convicção de que as “aflições daquele tempo não se comparavam à Glória que havia de ser revelada” (Romanos 8.18).
Suportou com firmeza a separação do filho que ainda amamentava e os constantes acessos de chantagem do seu pai, que ora lançava-se ao chão, ora arrancava suas barbas para convencê-la negar a fé em Jesus Cristo. Perpétua se compadecia pelo comportamento do pai, sabendo que ele buscava evitar sua condenação pública e a desonra da família por uma escolha que ele julgava ser irracional. Numa das visitas do pai, ao ser instigada a abandonar sua opção religiosa, Perpétua argumenta: “Meu Pai, vês no chão este vaso ou jarro, ou como queira chamar?”. Ele respondeu: “Vejo”. Então eu lhe disse: “Acaso é possível chama-lo de outro modo?” ao que ele me respondeu: “Não”. “Da mesma maneira, eu não posso me chamar outra coisa que cristã.”(3)
Em seu diário, Perpétua também relatou o sofrimento da escrava Felicidade, grávida de oito meses e que orava dia e noite em união com os irmãos, para que seu parto ocorresse antes do martírio. O Senhor escutou suas preces e por meio de intensas dores, Felicidade deu à luz a uma menina, que foi entregue aos cuidados de uma integrante da comunidade cristã. Enquanto gemia de dores durante o parto, um carcereiro dizia: “Agora se queixa pelas dores do parto. E quando chegarem as dores do martírio, o que fará?” Ela respondeu-lhe: “Agora sou fraca porque sofre a minha pobre natureza. Mas quando chegar o martírio, a graça de Deus me acompanhará e me encherá de força”. (4)
Aos sete de março de 203 d.C, Perpétua e seus companheiros de cárcere foram levados ao anfiteatro e lançados às feras. Perpétua e Felicidade receberam ainda punição mais humilhante por terem sido abatidas por uma vaca selvagem, como emblema de vexação ao fato das duas serem mães e lactantes. Após terem sido expostas nuas perante a multidão, alguns compadeceram-se delas e pediram que as trajassem novamente. Retornando à arena, a vaca selvagem as golpeou violentamente, porém, Perpétua ainda conseguiu se levantar, ajudou a erguer Felicidade e ajeitou suas vestes e seus cabelos, de forma a não aparentar ser uma pagã lamuriante. Em seguida, foram arremessadas mais uma vez diante da plateia, sendo Felicidade degolada e vindo a morrer imediatamente. No entanto, o soldado estando muito nervoso, feriu equivocadamente o pescoço de Perpétua e esta gritou de dores. Mesmo assim, encarou o opressor e mostrou com um gesto onde este deveria golpeá-la. Esta atitude, segundos antes da morte, testificou que ela se entregava voluntariamente ao martírio por amar a Cristo Jesus acima de todas as coisas.
O referencial simbólico promovido pelos registros de Perpétua, além de servir como instrumento de encorajamento aos cristãos reafirmarem sua fé ao mundo, também propicia conforto ao apontar o sentido da existência humana, que é a total dedicação para a Glória de Deus. Curioso observar que, quando expostos na ordem inversa, os nomes das heroínas deste relato designam a maior aspiração e esperança cristãs: Felicidade Perpétua (5).
Sobre a autora
Marcelle Vieira Salles é casada, mãe e administradora de empresas. Congrega na Igreja Esperança de Belo Horizonte. Ama ler e escrever nas horas vagas.
Sobre a ilustradora
Hanna Staudinger Stocksick é casada com dois filhos e vive na Califórnia há 20 anos, onde congrega na igreja Faith Community Church. Ama pintar em aquarela e digitalmente. Para acompanhar suas criações, siga @hannabygrace no Instagram.
REFERÊNCIAS
(1) SIQUEIRA. Silvia M. A. Memórias das mulheres mártires: modelos de resistência e liberdade. Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião. PUC Minas. V.4. N.8. Jun. 2006.
(2) Ad bestias: pena de morte que consistia no lançamento de pessoas à arena para serem mortas por animais selvagens. Passou a ser aplicada pelos romanos a partir do Século II a.C.
(3) ROBERTS. Alexander. & DONALDSON, James. 10 Early Christian Saints. The Passion of The Holy Martyrs Perpetua and Felicitas (203). Adapted from the Ante Nicene Fathers, Vol. 3. 1885.
(4) Santas Perpétua e Felicidade. Artigo disponível em > http://farfalline.blogspot.com/2015/03/santas-perpetua-e-felicidade.html
(5) Perpetua and Felicitas in the Carthage Arena. Artigo disponível em > https://www.christianity.com/church/church-history/timeline/1-300/perpetua-and-felicitas-in-the-carthage-arena-11629612.html
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