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Identidade e amor próprio (auto estima) num contexto de violência doméstica

Há temas difíceis. A violência doméstica é um deles. Uma das consequências da pandemia COVID19 e dos confinamentos foi o aumento dramático dos casos de violência doméstica em todo o mundo. Na Austrália, houve um aumento de 75% nas pesquisas do Google sobre ajuda em relação a violência doméstica. Chamadas para linhas de apoio à violência doméstica no Chipre aumentaram 30% e no Rio de Janeiro, os processos por violência doméstica aumentaram 50%. O número de mulheres que morreram como resultado de violência física duplicou em muitos lugares, do Egito até à Índia (1).

Por outro lado, gostaríamos de pensar que a violência doméstica nunca acontece num lar cristão. Contudo, uma pesquisa realizada no Equador e no Peru em 2013, mostrou que 70% dos adultos evangélicos sofreu algum tipo de violência doméstica nos últimos 3 anos. Esta investigação foi conduzida por Paz y Esperança, Comunidad e Restored, e aplicada a 2027 evangélicos. 60% das mulheres evangélicas e 40% dos homens evangélicos no Peru disseram que foram vítimas de abuso sexual quando eram crianças. No Equador, os números foram de 40% e 20%. Na Argentina, 30% e 20% (2).

Um estudo no Reino Unido constatou que 42% dos entrevistados em igrejas, tinha experimentado alguma forma de abuso no seu relacionamento e para a maioria, este foi de longo prazo (3).

Violência doméstica é justamente o contrário de amor. Se eu tivesse esse poder nas minhas mãos, faria com que todas as mulheres do mundo se sentissem amadas (4). O amor faz-nos querer levantar todas as manhãs e fazer tudo com alegria.  Amor é aquilo que te constrói, que te edifica, que te dá propósito e razão para continuar. Violência doméstica destrói, humilha e corrói por dentro. Vejam como a Palavra de Deus diz isto mesmo: “Maridos, cada um de vós amai a vossa esposa, assim como Cristo amou a sua Igreja e sacrificou-se por ela, a fim de santificá-la, tendo-a purificado com o lavar da água por meio da Palavra, e para apresentá-la a si mesmo como Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou qualquer outra imperfeição, mas santa e inculpável. Sendo assim, o marido deve amar sua esposa como ama o seu próprio corpo. Quem ama sua esposa, ama a si mesmo! Pois ninguém jamais odiou o próprio corpo, antes o alimenta e dele cuida, assim como Cristo zela pela Igreja,” (Efésios 5:25-29). E também, Jesus diz, Ele próprio, sobre a Igreja em Mateus 16:18: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” Jesus comprometeu-se a edificar a Sua igreja, e assim mesmo o homem deve comprometer-se a edificar a sua esposa.

Para todos os cristãos, penso que sempre é mais fácil apontar e reconhecer os pecados por comissão (que se cometem por atitudes, comportamentos, ações) do que os pecados que se cometem por omissão ou negligência. Mas a Bíblia é bem clara quando diz em Tiago 4:17 “Aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz nisso está a pecar”.

Por que é que refiro isto em relação à violência doméstica? Porque é muito fácil reconhecer violência doméstica quando existem marcas físicas (comissão) mas as marcas psicológicas que certo tipo de violência deixa, são bem dolorosas, apesar de muitas destas não serem visíveis. Resultam de pecados por omissão, em palavras contra ou em silêncios sobre a identidade e o amor próprio (auto-estima) da mulher. 

A base das nossas necessidades, segundo a pirâmide de Maslow, são as necessidades fisiológicas e de segurança. Se estas duas categorias faltarem (respetivamente comida, água, abrigo, sono e segurança da família, do corpo e da propriedade) isso é visível e possível de identificar imediatamente por terceiros. No entanto, se faltar algo nas outras três categorias, nem sempre é imediatamente constatado (a nível social, da estima e da realização pessoal), embora podendo deixar marcas igualmente lesivas no interior da mulher. 

A maioria das mulheres, diz-se, valorizam mais a parte emocional dos relacionamentos (sim! há diferenças de género no cérebro, existem vários estudos científicos sobre isso). Talvez por isso elas externalizem que necessitam mais do sentimento de segurança, proteção e reconhecimento, pois repousam mais sobre esse lado emocional dos relacionamentos. Assim, elas são altamente afetadas na sua auto estima, quando faltam estas dimensões.

É por isso importante reconhecer que a violência doméstica não é só física, é também emocional, verbal ou psicológica. 

A página da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) fala de vários tipos de violência: violência emocional, violência social, violência física, sexual, financeira e perseguição.

A Bíblia também aborda que a violência não é só física, pode ser também emocional e social: “A língua benigna é árvore de vida, mas a perversidade nela deprime o espírito.” Provérbios 15:4. Que palavras são estas que deprimem e destroem? 

  1. podem ser quanto à aparência física, depreciativas e sarcásticas “Olha para essa barriga, és tão sexy”. 
  2. Quanto aos teus gostos pessoais “Lá vai ela exibir-se…”. 
  3. Quanto aos teus amigos “Achas que tens amigos? Não tens ninguém com quem falar”. “Estás a ver aquela tua amiga? Se ficares como ela divorcio-me.”
  4. Quanto à tua fé? “Vai lá ter com os teus irmãozinhos da igreja, para eles te bajularem o ego. 
  5. Quanto ao teu trabalho, para te fazer sentir pequena e inferior “Achas que lá no trabalho gostam muito de ti, é? É só enquanto fores precisa, porque quando não servires mandam-te embora como os outros”. 
  6. Quanto aos teus gastos: “Só pensas em gastar dinheiro” (mesmo que seja em relação a coisas simples, como pequenos hobbies). 
  7. Tentar controlar os teus contactos/ redes sociais “Estás outra vez a mandar mensagens à tua amiguinha?”
  8. Ameaças repetidas de separação “Qualquer dia vou-me embora, ficas tu com os miúdos. O melhor é cada um ir para seu lado”.
  9. Palavras humilhantes sobre e na intimidade sexual.

A ausência de palavras também destrói. Os “tratamentos de silêncio” são silêncios que persistem por dias ou até semanas, por vezes omitidos diante dos outros, mas dilacerantes na intimidade do lar.

Outra questão a ter em conta é: se a mulher não está convicta na sua identidade, se não é segura, se não tem amor próprio e auto-estima, pode facilmente entrar numa relação violenta, abusiva ou tóxica, da qual, posteriormente, será muito difícil sair, achando que não tem valor, que não irá encontrar mais ninguém, que ninguém mais a irá querer, e a sua insegurança poderá servir ao próprio parceiro abusivo que assim a reforçará, e até fará com que a mulher se sinta culpada acreditando que não é boa esposa, nem boa mãe, que não se esforça o suficiente, etc. Tudo isto piora se a mulher não tiver apoio/suporte ou alguém que acredite nela. 

Outro aspeto da violência, seja ela qual for, é que ela não afeta apenas aqueles ou aquelas a quem se dirige diretamente, mas também os filhos. Se não são atingidos diretamente pela violência, eles podem ver o modelo abusivo ou tóxico que ocorre em casa, podendo vir a repeti-lo ou admiti-lo no seu próprio agregado familiar, quando tiverem um.

E a Bíblia? O que aprendemos na Bíblia sobre violência doméstica? As melhores famílias da Bíblia (Abraão e David, por exemplo) tiveram episódios de violência doméstica. Mas não só. Veja-se o que aconteceu à concubina do levita (Juízes 19), que foi enviada para fora de casa, para que os homens malignos daquela cidade abusassem dela (um levita! alguém instruído nos procedimentos da adoração a Deus). 

Abraão, o amigo de Deus, o pai da fé, negou que Sara fosse sua mulher, com medo que o matassem (Génesis 20). Assim, o rei daquela cidade a tomou como mulher, com tudo o que isso poderia significar naquela altura. Em bom português, é como se Abraão estivesse a dizer nas entrelinhas “Sara, não importa o que te aconteça, desde que eu me safe!” Por outro lado, Abraão e Sara, usaram erradamente a Agar, e depois a expulsaram (Génesis 21). 

Quanto à família de David, o seu filho Amon, abusou da sua meio irmã Tamar e por causa disso, o seu meio irmão Absalão matou-o (2 Samuel 13). 

Nesta altura, as mulheres não tinham qualquer voz, opinião ou oportunidade de se defender. 

Porque acham que Deus permitiu a inclusão de tais histórias no relato bíblico? Certamente para nos ensinar e para aprendermos com elas. 2 Timóteo 3:16-17 diz que Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra. 2 Timóteo 3:16,17. Uma das coisas que aprendemos é que, por vezes, a violência doméstica não conhece barreiras de fé ou denominação religiosa. 

Quero apresentar ainda a história de outro casal da Bíblia, Nabal e Abigail (I Samuel 25) em que ele seria uma pessoa muito desagradável e de difícil trato. O seu nome significava tolo, mas pelo que a Bíblia diz, ele tinha muitas terras e bens, o que me sugere que ele faria uma boa gestão no que às suas posses dizia respeito, pois era rico e tinha muitos empregados. No entanto, em termos de relacionamentos, seria intragável, estando disposto a começar uma guerra com quem apenas lhe pediu uma ajuda (David). Em relação a isto, Abigail tomou a iniciativa de apaziguar David. O que retiro desta história é que as mulheres não se devem deixar intimidar, mesmo se o cônjuge é de difícil temperamento. Imaginem se Abigail ficasse com medo e pensasse “O que Nabal irá fazer se descobrir que falei com David?” Não te deixes intimidar – pede ajuda. Outra coisa que aprendemos com esta história é que conflitos familiares não acontecem apenas em famílias com poucos recursos, eles podem acontecer em qualquer estrato social.  

Um outro aspeto que acho importante realçar é que mulheres (meninas) que não sejam validadas, reconhecidas, protegidas pelo seu pai, que não tenham referências fortes a nível familiar especialmente, terão mais probabilidade de cair numa relação abusiva, tóxica ou violenta, pois não terão amor próprio suficiente para estabelecerem limites, para dizer “não”, deixando o agressor ganhar espaço ou dominando por completo ou quase, as ações, escolhas e palavras da vítima. A propósito disto, veja-se por exemplo a história de Diná, a única moça no meio de 12 irmãos homens, os filhos de Jacó. A Bíblia diz, em Génesis 34, que ela saiu para “ver as filhas da terra”. Talvez se sentisse só ou com pouca atenção num meio tão masculino. Esta situação, infelizmente, resultou em tragédia, promovendo os seus irmãos um massacre para vingar o facto de Diná ter sido violentada pelo príncipe da terra.  

Existem indicações empíricas de que o testemunhar de violência doméstica na família de origem pode ser visto como um fator de risco para o perpetrar violência doméstica. Mas um estudo recente indica que em 60% dos agressores entrevistados nesse estudo não assistiram a violência no seu agregado de origem (5).

Esta questão fez-me lembrar algo também muito importante, que é referido na Palavra de Deus: não devemos fazer nenhuma aliança com ninguém sem primeiro ter a certeza da aprovação de Deus. Vemos que isso aconteceu em Josué 9, levando Josué a entrar em guerras que não eram as suas (Josué foi enganado).

Outra situação que deve ser equacionada é a seguinte: se uma pessoa sofre violência doméstica e é cristão, tem de perdoar. Sim, o perdão é uma ordem para os cristãos (Mateus 18:21-22). mas isso não significa que as pessoas tenham de ter a mesma proximidade do que antes (6).

A Bíblia também nos lembra que quando alguém peca contra nós, seja em violência doméstica ou outra situação, não temos de lidar com isso sozinhos (Mateus 18:15-17). Assim, NÃO TENHAS RECEIO, VERGONHA, NÃO TE SINTAS CULPADA, por seres cristã e pedir ajuda. Ao mínimo sinal de dares contigo a pensar: “Não é este o amor que Deus planeou entre homem e mulher”. Conta a alguém de confiança, neutro em relação a vocês dois, para que não existam preferências, alguém idóneo, experiente, e que possa realmente ajudar-te a pensar o que fazer, com a ajuda do Espírito Santo.

Lembro que o compromisso de Deus é edificar a Sua igreja, é edificar-Te. Se vives em algo que não te edifica, talvez tenhas de fazer alguma coisa acerca disso, tal como Jesus fez quando quiseram apedrejá-lo (João 8:59). 

De facto, a Bíblia diz que são bem aventurados aqueles que forem injuriados e perseguidos, (Mateus 5:11) e também diz que devemos dar a outra face (Lucas 6:29), mas ambas as situações são por amor ao Evangelho de Cristo, que é um Evangelho de libertação, e não por amor a um homem que, de facto, não demonstra que nos ama, ou a um relacionamento que não nos constrói. 

Creio que, apesar do perdão, do “amor tudo suporta” (1 Coríntios 13:7), Deus tem um propósito para a tua vida, Ele deu-te dons e talentos para usares ao serviço da Sua igreja, Ele quer que sejas edificada e não destruída. E se a violência que sofres, seja física ou verbal, te impede de alcançar o propósito de Deus para a tua vida, algo não está bem. Se devemos viver no Reino de Deus, que é justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Romanos 14:17), se algo que vivemos constantemente nos tira isso, então temos de tratar dessa situação. Não adiar, não deixar passar, não esconder, pode ser importante pode ser a chave para colocar um fim a um ciclo que pode ser tão doloroso. 

(1) Uma visão bíblica dos relacionamentos para o fim da Violência Doméstica, Aliança Evangélica Mundial, 2020.

(2) Idem, Ibidem.

(3) Idem, ibidem. Esta pesquisa foi conduzida por Restored, 2018. http://www.restored-uk.org/resources/in-churches-too-church-responses-to-domestic-abuse/

(4)  Embora este texto se refira às mulheres como vítimas de violência doméstica (estatisticamente elas representam 85 a 90% das vítimas), sabemos que também pode acontecer com os homens.

(5)  Tatiana Caldeira (2012) Perfil psicopatológico de agressores conjugais e fatores de risco. Tese de Mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde, Universidade da Beira Interior. 

(6)  Livreto “Uma Visão Bíblica dos Relacionamentos para o Fim da Violência Doméstica”, da Rede Cristã para o Fim da Violência Doméstica, Aliança Evangélica Mundial, 2020.

Escrito por -

Elsa Correia Pereira tem 42 anos, é casada com o Bruno e mãe da Salomé do Enoque, socióloga e congrega na Igreja AD Encontro Vida, em Lisboa, Portugal.

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