Eu não sou o meu passado de abuso
Eu teria 7 anos quando tudo começou. O episódio que marcou o início daquilo que hoje designamos por abuso sexual não foi, ao contrário de como muitos imaginam este cenário, uma abordagem violenta. Pelo contrário, ela foi trazida numa sequência de gestos, que hoje eu vejo como inapropriados, mas que eram mais ou menos aceitáveis na época. Precisamos recuar aos anos 80, em que muitas das vezes deixar os filhos ao cuidado de amigos poderia incluir a recomendação: “Se eles não se portarem bem, façam como aos vossos filhos e corrijam”. Talvez por isso, quando aquele homem amigo me abordou ao deitar, já com a sua filha a dormir, eu não gritei. Eu simplesmente aceitei o que estava a acontecer.
Outros episódios se seguiram, e incluíram um nível de intimidade crescente, porém nunca demorada ou violenta. Nunca ouvi uma ameaça naqueles instantes específicos. Sentia olhares noutros momentos de brincadeira familiar, e uma vez ou outra, a aquela voz com um olhar: “Não te esqueças, tens de te portar bem”.
Continuei a ir para esta casa vez após vez, e quando num desses dias, me recusei a obedecer num dos momentos de convívio geral, esse amigo entendeu colocar-me de castigo a tarde toda num quarto. Recordo-me de esse episódio ainda me ter valido uma repreensão por parte dos meus pais, alheios a tudo o que se estava a passar. Pedi para não voltar lá na vez seguinte, gesto que os meus pais entenderam ser na sequência dessa “desobediência”. Quis a providência divina fazer com que circunstâncias da vida nos afastassem fisicamente e nunca mais termos contacto com estes amigos. Mas entre o primeiro episódio com que começo este texto e o desligar, terei estado exposta a esta realidade cerca de dois anos. Nunca disse nada aos meus pais, nem a ninguém.
Teria talvez 17 anos quando, em grande luta de fé e desentendimentos vários com os meus pais e com a vida, li um artigo que me trouxe esta realidade e explicava alguns dos meus comportamentos e dificuldades, como resultado da minha ausência de tratamento para com o que tinha vivido. Tornei-me, cedo, uma menina a que muitos chamavam de “arisca” (acanhada, defensiva, insociável). Contacto físico não era algo que me agradasse por aí além, e grandes demonstrações de afecto sempre me trouxeram repúdio. Os que me rodeavam, apesar de tolerarem a minha timidez, criticavam a minha frieza e alguma pronta agressividade e defesa constante. Guardei demasiados anos para mim um novelo de revoltas que nem eu tinha nome para lhes dar, e a verdade é que nem eu mesma me compreendia. Ao ler aquele artigo, via em mim aquela adolescente de respostas prontas e rebeldes para com os meus pais, o meu súbito desinteresse na escola (passei de óptima aluna a completamente desinteressada), indiferença para com os outros. Para muitos, eu estava a ter uma adolescência desafiante. Mas não era só isso. Eu precisava de me tratar e falar. Aquele texto retratava a minha vida, a de uma pessoa que tinha sofrido abuso.
Busquei ajuda técnica através de uma linha de apoio à vítima, sem ninguém saber. Numa primeira fase, residia em mim o desejo de vingança. Depois de ter ganhado um nome para aquilo que tinha comprometido a minha forma de viver a vida, eu queria a todo o custo encontrar esse homem e fazer justiça. Mas não tinha como.
Sempre que abria a Bíblia, as minhas mãos iam parar ao Salmo 139, e exposta à sua leitura repetida, compreendi que aquilo que eu era não se definia pelo que me tinha marcado no passado, nem por fazer justiça própria, e cheguei ao entendimento de que o meu caminho era o do perdão. O Espírito Santo claramente foi falando comigo, na minha solidão. Eu tinha de perdoar e prosseguir, vendo-me ao espelho de forma respeitosa. Foi uma jornada lenta e muito solitária, a de compreender que eu precisava de confiar em Jesus, receber o meu perdão por todos os meus pecados e estender perdão a este homem. A primeira vez que contei a alguém da minha confiança o fardo que ainda carregava, já teria 20 anos, e fi-lo com muita dor e vergonha. Dou graças a Deus pelos braços que me ampararam, lamentaram comigo, e guardaram sigilo.
No processo de me aceitar como Deus me criou, fui sendo trazida mais para perto dele. À medida que me fui focando na graça que me alcançou, mais graça estendi na minha mente a essa pessoa que nunca me pediu perdão.
Nesse processo de perdoar, a minha auto-imagem foi sendo trabalhada e Deus preparou o meu coração para me casar e ter filhos. No início do namoro com o meu marido, foi importante para mim verbalizar que eu trazia algo que poderia ser um problema no nosso relacionamento, eu tinha receio de que algo de muito errado se despoletasse em mim no momento de me entregar. Ele nunca viu isso como problema, e essa leveza ajudou-me até a ir esquecendo o assunto e ir considerando a nossa vida em conjunto, escrita do zero. E assim foi. O assunto foi deixado para trás.
Graças a Deus, o Espírito Santo trabalhou de tal forma o meu íntimo que me limpou de toda a amargura, e me trouxe a uma redefinição do que a intimidade criada por Deus, realmente é.
Graças a Deus que usou experiências como estas de sofrimento para me trazer para mais perto dele, e me ensinar o caminho da humildade, da restauração, da dependência e a estender graça a quem sofre de forma semelhante.
Hoje, eu sou uma mulher feliz. Olho para trás, e vejo sofrimento e solidão durante grande parte do meu crescimento, mas agora já não é assim. Não olho para o passado como completamente estragado, e com escolhas dominadas pela amargura.
São muitas as vezes que ainda sou tentada a cair num lugar de isolamento, de defesa, ou de inferioridade quando coisas correm mal noutras áreas, porque eu sou um todo, com memória. Nessas alturas, eu recordo o que Cristo fez e declamo o Salmo 139 na íntegra, com especial ênfase no versículo 14: “Eu te louvarei, porque de um modo assombroso, e tão maravilhoso fui feito; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem.”
Perdoar não significa não voltar a cair em maus pensamentos. Mas significa que quando eu sou tentada a voltar aos mesmos lugares de dor, eu relembro o que Deus já fez e quem eu sou aos seus olhos.
Há uma música recente (Hillsong Worship) que diz que eu sou quem Deus diz que eu sou. Eu sou escolhida, amada, aceite, perdoada, filha de Deus. Eu não sou o meu passado, a minha identidade é Cristo. Amém!
Viviam Oliveria
Obrigada por compartilhar. O Salmo 139 também já foi muito importante numa virada de chave da minha vida. A meditação nele me ajudou a resgatar minha identidade em Deus. Que Ele continue te abençoando.