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Diário de Adoção #03 – Nosso primeiro encontro

As primeiras visitas, finais de semana e férias juntos

*Por Carol Bazzo

Nosso telefone tocou em meados de outubro de 2018, quando recebemos a ligação da assistente social nos convidando a ir até o fórum de nossa cidade. Fernanda e Alice1 (assistente social e psicóloga, respectivamente) nos receberam e contaram toda a história dos irmãos Miguel e Gabriel. Como já disse anteriormente, nós não compartilhamos a história dos meninos e os detalhes da vida deles. Sem querer gerar suspense, apenas entendemos que esse tesouro pertence apenas à nossa família e, em especial, a eles. Se um dia quiserem contar, é uma decisão que pertence a eles. Mas uma coisa posso dizer, a cada informação que elas nos davam, meu coração e o do Angelo se emocionavam, doíam, se abriam. Antes de conhecer o Mi e o Gabis pessoalmente, nossos corações já estavam se ligando ao deles.

Em minutos, já estávamos na casa de acolhimento. Fernanda nos lembrou que precisávamos ser discretos – para eles seríamos como uma visita qualquer ali. Abriram a porta da casa, diversas crianças ao nosso redor. Alice nos apresentou todas as crianças pelo nome, enfatizando discretamente os nomes Miguel e Gabriel. Hoje, quando lembro desse momento, consigo sentir a tensão que eu experimentei naquele dia. O Angelo super à vontade, brincalhão, feliz. E eu, tensa, fingindo estar à vontade e falhando visivelmente. Não senti frio na barriga, não senti nada muito especial, nem paixão à primeira vista. Mas o Miguel e o Gabriel eram muito divertidos, conversadores, engraçados. Logo eles me fizeram ficar à vontade. Eles me acolheram.

Pintura que fizemos em nossa primeira visita a casa de acolhimento no período de aproximação

 

Quem eram meus filhos naquele dia? De um ângulo, eram outras crianças totalmente diferentes das que tenho hoje em casa. Inquietos, magricelos, roupinha suja, falavam palavrão, durões, diziam que gostavam de It, a coisa (se referindo ao monstro vestido de palhaço do filme). Hoje, nada disso se refere a eles. Até do It, a coisa (hoje eles admitem) morrem de medo e vêm correndo pra minha cama se aninhar com a gente, quando alguém falou muito desse filme durante o dia. Era tudo uma capa.

De outro ângulo, ali eram meus filhos, os mesmos de hoje. Miguel não parava de falar, não tinha vergonha de se relacionar, pegou na minha mão e ficou mexendo nas minhas unhas como faz até hoje, quando elas estão grandes.

Gabriel já era o líder da turma, um pouco tímido para fazer novas amizades, mas cheio de vontade de se aproximar. Inteligente, cara de durão, mas muito afetuoso. Meus filhos. Muita coisa iria mudar, mas muito do que vi naquele dia já era a identidade deles.

Depois desse encontro, eu estava muito nervosa, não conseguia pensar direito em nada. Angelo foi o suporte e a força de tudo. Decidimos no mesmo dia continuar a aproximação. Primeiro, faríamos visitas semanais à casa de acolhimento e teríamos algumas horas exclusivas com eles para nos conhecermos. Depois, poderíamos levá-los para passear por algumas horas. E, ainda mais para frente, poderíamos levá-los para dormir em casa um final de semana inteiro. Fomos avisados sobre não levar presentes (a criança precisava gostar da gente por nós mesmos, não pelo que poderíamos dar a eles). Achei excelente o conselho e seguimos à risca.

Mas, quando começamos as visitas semanais, eu tratei logo de organizar uma bolsa grandona que tivesse brinquedos, livros e atividades para gente fazer junto. E deu super certo! A gente pintava, lia livros, brincava com alguma coisa e assim fomos nos conhecendo. No primeiro dia, o Miguel deixou escapar seu anseio por família fazendo uma brincadeira em que eu era a mãe e tinha que cozinhar pra ele. Eu e o Angelo trocávamos olhares e discretas risadinhas de canto. A gente sempre memorizava as coisas engraçadas e interessantes para conversarmos no carro, no caminho de volta para casa.

Angelo lendo para o Gabriel na nossa segunda visita

 

Para os meninos, a hora da nossa partida não era fácil. Eles ficavam bravos, irritados e às vezes choravam. Era um sinal bom, afinal, eles estavam demonstrando que gostavam da gente. Mas, por outro lado, era triste. Ainda na primeira semana, tivemos um episódio interessante. Na hora de ir embora, o Miguel disse que não queria que a gente fosse. Ficou bravo, chutou as portas, saiu correndo, sentou num canto com os joelhos dobrados e a cabeça escondida. O Angelo viu aquilo e foi carinhosamente até ele, se abaixou e disse: “Você está triste amigão? Eu vou, mas eu volto”. O Miguel levantou a cabeça e respondeu: “Vai tomar no c*!!”.

O Angelo começou a chorar. Nos despedimos da maneira que deu e eu, que não tinha visto nada daquilo acontecer, perguntei para ele no carro: “por que você está chorando?”. Ele me contou tudo e disse: “quando ele respondeu aquilo pra mim, eu senti o Espírito Santo me dizendo: ‘ele queria ter dito ‘Pai, não vai embora’, mas ele não sabe dizer isso.’ Aquela frase era a que ele sabia usar!'”. Naquele dia eu entendi que precisaríamos do Senhor para entender os meninos e que podíamos contar com o Espírito Santo para isso.

Depois de mais ou menos um mês de visitas semanais, recebemos autorização para um passeio. O coração só faltava sair do peito de tanta alegria! Eles iam conhecer nossa casa, nosso bairro, nossa vida. Iam comer a minha comida, almoçar na nossa mesa. Iríamos apresentar o mundo para eles pela primeira vez. Passei a semana pensando em como fazer esse dia ser perfeito. Nunca vou esquecer o rostinho de alegria deles dois sentados no banco de trás de nosso carro quando os buscamos na casa de acolhimento. Esse dia também foi muito interessante.

Tínhamos das 11h às 17h para viver nosso dia feliz. Eles conheceram nossa casa, almoçaram, fomos passear num parque, fomos no shopping, tomamos sorvete, eles andaram de skate e depois de bicicleta. O dia já estava quase acabando e estávamos correndo contra o tempo para fazer tudo que tínhamos planejado. Mas de tudo que compramos para eles e todos os lugares que passeamos, sabe qual foi a coisa que eles mais pediram pra fazer? Tomar banho e tirar um cochilo na nossa casa! Tínhamos só 20 minutos restantes, então eles tomaram um banho rápido e dormiram de mentirinha por 3 minutos na cama que, em breve, seria deles.

Eles queriam muito viver a experiência da casa. Me sinto uma boba pensando em como me preocupei com um bom passeio, enquanto o que eles realmente queriam era só curtir a gente e a casa. Graças a Deus, eles não choraram muito na hora de voltar para a casa de acolhimento. Muitas crianças sofrem com esse período. Mas hoje, vejo como é extremamente necessário. Eu particularmente achei a fase mais difícil do processo de adoção, são dias de montanha-russa. No nosso caso, que já tínhamos decidido no coração que queríamos ser os pais deles, era doloroso não tê-los conosco todos os dias e para sempre. Durante a semana, eu vivia a minha vida normal e aos finais de semana era mãe. Era muito estranho. Mas vejo que foi necessário. A criança precisa ir nos conhecendo, criando vínculos. Nós também precisamos conhecê-los, criar vínculos, sentir saudade, sentir falta.

Assim que conheci os meninos, como já contei, não senti nada de especial. Cheguei até a ter dúvidas se era para ser ou não. Mas nessa fase, chamada de fase de adaptação, que funciona como uma espécie de namoro para a aliança da adoção que pode vir a ser feita ou não, eu simplesmente dei de cara com meus sentimentos. Eu sentia saudade, queria que tudo passasse logo, sofri. E tudo isso era meu amor de mãe nascendo. Período necessário especialmente para mim. Mais triste, porém necessário, foi o que vivemos ao final do período de férias com eles.

Logo depois que os meninos dormiram uma ou duas noites em casa, chegou o tempo de férias. Recebemos autorização para eles passarem o mês de dezembro e janeiro conosco. E, segundo os profissionais que nos acompanhavam, eles deveriam ficar em definitivo (se eles demonstrassem que estavam felizes e se adaptando bem!). No processo de adoção tardia eles procuram fazer tudo pensando primeiramente na criança e evitando possíveis traumas e sofrimento. Depois de viver por 60 dias na nova casa, que eles já sabiam que seriam seus pais, voltar a dormir na casa de acolhimento não seria nada bom.

O dia que os meninos conheceram a praia em Santa Catarina

 

Tivemos as melhores férias da vida! Curtimos muito nossa casa, vimos filme, eles fizeram novos amigos, conheceram nossos amigos (que viraram os tios e tias com os quais são apegados até hoje), compramos roupa nova, viajamos 15 horas de carro, eles conheceram a praia pela primeira vez e souberam o que é ter uma avó que deixa a criança fazer o que quer. Mas, quando estávamos ainda em uma das praias de nossas férias, recebemos a ligação da assistente social nos informando que devido ao atraso de entrevistas eles não conseguiriam encontrar os meninos para ver se estava tudo bem e liberar a guarda para eles continuarem conosco. O juiz havia decidido que os meninos precisariam voltar para a casa de acolhimento no final das férias (que era dali uns quatro dias) até que fosse possível agendar uma data para os profissionais verificarem como eles estavam se sentindo nesse processo todo.  Em algum momento eles voltariam para gente – mas ninguém sabia quando.

Os dois passeando com a avó na primeira viagem de férias que fizemos juntos

 

O Angelo chorava sem parar, a avó chorava, eu chorava. E a gente tentava esconder tudo deles. Não conseguíamos imaginá-los abandonando as coisas deles, a vida deles, a cama, o quartinho, tudo o que já tínhamos construído nesses dois meses e voltando para uma casa de acolhimento que certamente mudou muito desde a saída deles. Pegamos o carro no mesmo dia e voltamos para nossa cidade com o coração apertado. Como a gente iria falar para eles que precisavam voltar? Desde a primeira semana das férias eles já nos chamavam de pai e mãe. Eu e o Angelo já tínhamos falado a frase “é para sempre” explicando a nossa decisão. Os vínculos já tinham sido criados. E naquela noite, na estrada voltando para casa, eu vi que meu coração já era deles.

No outro dia, acordamos cedo. Os meninos estavam dormindo, cansados de viagem. Eu comecei a planejar uma petição com um advogado e pensar estratégias para contar aquilo tudo para eles quando vi na minha estante o livro “Abandono à Providência Divina”2. Aquela capa e o livro que eu conhecia muito bem falaram comigo. Era 24 de janeiro de 2019, e eu orei entregando eles ao Senhor. Deus é soberano, nada acontece sem que Ele permita. Eu não sabia, mas o Angelo tinha feito o mesmo, só que invocando a Deus como justo juiz. Teríamos que, em breve, fazer as malas deles e dar a notícia, então à tarde eu decidi dormir um pouco. Quando acordei vi que tinham mensagens e ligações no meu celular. Era da equipe técnica, a Márcia (nome fictício) atendeu ao meu retorno com uma voz eufórica e alegre: “Ele liberou! O juiz liberou. Vocês vão ficar com eles agora!”.

Depois, com calma, o advogado nos explicou que o juiz já tinha emitido oficialmente sua decisão das crianças voltarem para a casa de acolhimento, mas que (por milagre) mudou de opinião e voltou atrás, algo que era muito raro. Deus ouviu nossas orações. Em poucos dias, nós estávamos não só com os meninos em casa, mas também com a guarda provisória e todos os documentos como pessoas legalmente responsáveis por eles. Tínhamos vencido uma fase!

Bolo que fiz comemorando 3 meses da nossa família

 

Com a guarda provisória3, agora começamos nossa vida. Os meninos começaram o ano escolar em uma nova escola. A gente voltava ao trabalho. Tínhamos uma rotina, éramos uma família. Em meados de fevereiro, comemoramos 3 meses do nosso “para sempre” e eu defini que o dia 13 de dezembro de 2019 seria a data de nascimento da nossa família – o dia que os meninos vieram para casa.

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1 Nomes fictícios.

2 Livro escrito pelo Padre Jean Pierre de Caussade, no século XVII. Apesar de católico, é um livro que falou muito ao meu coração (e de muitos outros evangélicos). Nele, o autor fala sobre “o sacramento do momento presente”, como o hoje e o que nos acontece hoje faz parte da providência de Deus e o quanto devemos recebê-la com ações de graças entendendo que Deus tem um objetivo final por trás de tudo isso.

3 Depois da guarda provisória, é previsto que em até 180 dias, se tudo for positivo, o casal receba a guarda definitiva, ou seja, é concluído o processo de adoção. Mas na prática esse tempo pode variar bastante.

 

Obs.: Texto escrito em português do Brasil. Esta plataforma não obedece ao Novo Acordo Ortográfico e respeitas as regionalidades da Língua Portuguesa de acordo com a origem de suas autoras.

Escrito por -

Carol tem 31 anos e é esposa do Angelo, mãe de Miguel e Gabriel. É professora de História da Igreja e mestranda em Teologia Histórica. Vive em Monte Mor e serve na Igreja Cristã Convergência.

Discípulas de Jesus de diferentes denominações da fé protestante com o propósito comum de viver para a glória de Deus.
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