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Benditas na História – Hildegarda de Bingen

Ilustração original por Rita Robalo

Hildegarda de Bingen a importância da saúde física e da beleza espiritual

Que a beleza de vocês não seja exterior, como tranças nos cabelos, joias de ouro e vestidos finos, mas que ela esteja no ser interior, uma beleza permanente de um espírito manso e tranquilo, que é de grande valor diante de Deus. 1 Pedro 3:3-4

(Hildegard von Bingen, 1098-1179)

A ousadia das místicas medievais surpreendia o clero cristão que se admirava de que uma simples freira instruísse bispos e tivesse seus conselhos solicitados por sacerdotes e governantes. O franciscano alemão Lamprecht de Ratisbona indagou que arte era aquela, graças a qual uma mulher idosa podia compreender melhor do que um homem erudito. A arte era espiritual e o doador o próprio Espírito Santo.

Uma daquelas místicas inspiradas foi Hildegarda de Bingen, que viveu dos oito aos quase 82 anos como freira beneditina, tornando-se abadessa de um convento na Alemanha. Hildegarda, cujo nome significa aquela que é audaz na batalha, nasceu em uma família pertencente à nobreza. Seus pais foram os alemães Hildebert e Mathilde e ela foi a décima filha do casal. 

Ela não era uma menina como as outras, porque desde sua meninice causava espanto à sua volta, enxergando além do que era visível e experimentando a força e o mistério dessas faculdades visuais em seu interior desde os três anos de idade. Como décima filha, Hildegarda foi ofertada como dízimo ao Senhor: “cumprido os oitos anos de idade, seus pais a ofereceram a Deus como ‘dízimo’ para compartilhar a vida reclusa com a virgem Judite (Jutta), filha do conde de Sponheim, no monastério beneditino de Disibodenberg”. Ela se dizia atravessada pelos “ventos de Deus” e as revelações que escreveu constituíam crítica severa às riquezas e corrupções da Igreja. Hildegarda se correspondeu com papas e reis com autoridade por meio de mais de 400 cartas, e declarou ao místico Bernardo de Claraval que só falava sob a instrução do Espírito, porque era uma mulher pobre e ignorante.

A afirmação revela a humildade de Hildegarda, que foi uma polímata de produção literária extensa: tratados de teologia, filosofia, poesia, teatro, música e ainda textos sobre medicina e ciências naturais. Ela foi ouvida por papas, imperadores, bispos e teólogos sobre pontos da doutrina cristã; e, quando viajava, transmitindo os recados divinos, era posteriormente solicitada a enviar o que falara por escrito para edificação das pessoas.

Sua obra foi imensa e diversificada e seu mais surpreendente aspecto é uma particular cosmologia, que integrava o homem à natureza e a Deus, superando a dicotomia corpo-alma desde Agostinho. Suas interpretações nunca significaram um confronto direto com a ortodoxia dogmática do Cristianismo, pois manteve um conservadorismo em tudo o que era essencial. Como mística e cientista, Hildegarda permaneceu sempre em sua própria realidade, mesmo diante do sobrenatural. Seus manuscritos estão em latim e alemão e sua obra foi cuidadosamente estudada por beneditinos e especialistas em profetismo e mística medieval. 

A alemã, além de monja beneditina, foi também conhecedora de farmácia e da botânica, cosmóloga, compositora e musicista (tocava o decacorde, um tipo de harpa de dez cordas). Foi compositora de hinos, antífonas e cânticos, e uma das primeiras autoras de óperas da história. Suas composições musicais foram reunidas sob o título de Sinfonia da harmonia das revelações celestiais e eram executadas jubilosamente nos seus mosteiros, difundindo uma atmosfera de serenidade. Para ela, toda a criação é uma sinfonia do Espírito Santo, que é alegria e júbilo em si mesmo.

Foi a partir de seus tratados sobre ciência natural que ela começou a receber reconhecimento público. Os dois trabalhos do século XII que se conhecem sobre o assunto foram escritos por ela. Hildegarda compôs uma verdadeira enciclopédia de ciências naturais e medicina, estabelecendo relações entre os produtos da natureza e as pessoas, pesquisando os conhecimentos relativos ao homem, seu equilíbrio e sua saúde.

Às suas receitas terapêuticas denominava Maravilhas do Senhor, dizendo-se inspirada diretamente pelo Criador. Seus “alimentos da alegria” eram o funcho, o espelta (um tipo de trigo antigo), castanhas, marmelo, amêndoas e muitas especiarias como a canela, a noz moscada, o tomilho e o cravo da índia, os quais preconizava consumir regularmente – alimentos ricos em vitamina B12 e magnésio. Algo bem diferente eram as dosagens das receitas, um pouco estranhas ao leitor moderno: “Às vezes a quantidade indicada consiste em tomar ‘na ponta de uma faca’ ou ainda, segundo um hábito comum na época, a medida é meia casca de ovo. De qualquer maneira, estão muito longe das precisões de nossos dias.

Na Idade Média, os algarismos eram pouco familiares. Imaginem uma recomendação de cozinhar vigorosamente o dictamno (espécie de cogumelo) na água, com um tanto de barba-de-júpiter e acrescentar urtiga, duas vezes o tanto de barba-de-júpiter, e misturar tudo. O jejum também era indicado por ela, mais uma dieta revitalizante e desintoxicante praticada por duas ou três semanas. Consistia basicamente em uma sopa de espelta e legumes, condimentada com tomilho, camomila e gengibre, ao meio-dia, chás e sucos de frutas, pela manhã e à noite. Atualmente, a utilidade terapêutica do jejum tem sido confirmada em inúmeras comunicações científicas.

Em suas obras, Hildegarda frequentemente preocupa-se com a cura da “melancolia”, considerada perigosa porque acaba com a “viridez”, que é a pujança da vida manifestada pela plenitude do viço e que ela sempre menciona ao citar as plantas, mas também sobre todas as criaturas vivas. Atualmente, é falado que a melancolia foi substituída pela ansiedade, que também causa grande estrago interior. Sem desprezar o papel maléfico da bile negra no organismo, Hildegarda desenvolveu uma percepção correta sobre o papel do fígado e a consequência dos exageros alimentares. Ela preocupava-se em cuidar do doente mais do que da doença.

Hildegarda dirigia sua atenção ao belo, ao odor agradável, à harmonia e à beleza interior. Para ela, o estado natural humano é a saúde e nunca a doença. Foi a criadora da água de lavanda, apreciada até hoje, e estudou a utilização de ervas e óleos na cura das doenças. Sua obra sobre plantas medicinais escrita em 1158 ainda é referência da medicina natural. 

Ela criticava a hipocrisia dos véus negros e pesados, que muitas vezes ocultavam um coração cheio de pecados e ressentimentos. Para ela, a beleza, criada por Deus, devia ser usada para glorificá-lo, mas sempre acompanhada de humildade e boas obras. Quando construiu seu próprio convento, Hildegarda afrouxou as regras beneditinas. A música e a beleza eram importantes para ela, e as freiras vestiam-se de branco e de flores e entoavam canções de sua autoria. Crendo que uma mulher devia se arrumar em honra ao Criador, permitiu que as monjas usassem o cabelo solto, vestes claras e luxuosas, ornamentos de ouro e perfumes, pois eram as noivas de Cristo.

O que podemos aprender com Hildegarda, é que um espírito manso e tranquilo é um traje incorruptível; ele é silencioso e atraente, e fala mais alto do que lindos vestidos ou ricas palavras. O problema não está no uso de enfeites, mas sim no valor dado à aparência. Quando a cristã gasta mais tempo, dinheiro e esforço cuidando de seu corpo físico do que cultivando a comunhão com Deus, e desenvolvendo o fruto do Espírito, a balança se desequilibra. Não é pecado gostar de se arrumar, mas a futilidade, a vaidade exacerbada, nos tornam pessoas individualistas e nos impedem de ver os outros ao nosso redor e refletir nelas o amor de Deus. O equilíbrio é fundamental. 

Para concluir, nada melhor do que citar um versículo dos Salmos no resumo biográfico daquela que viveu salmodiando, pois aprendeu a ler cantando salmos e tocando a harpa de dez cordas.

Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no ventre de minha mãe. Graças te dou, visto que de modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as tuas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem. Salmo 139:13-14 (NAA)

 

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Rute Salviano Almeida é pesquisadora e escritora da História das Mulheres no Cristianismo. Obras publicadas: Uma voz feminina na Reforma, Uma voz feminina calada pela Inquisição, Vozes femininas no início do protestantismo brasileiro, Vozes femininas no início do Cristianismo, Vozes femininas nos avivamentos, Heroínas da Fé (devocionais) e Reformadoras. Licenciada em Estudos Sociais, bacharel e mestre em Teologia, pós graduada em História do cristianismo e membro titular da cadeira 31 da Academia Evangélica de Letras do Brasil. Prêmio Areté 2015 com o livro Vozes femininas no início do protestantismo brasileiro.

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