Benditas na História – Blandina
BLANDINA. DEDICADA ESCRAVA DOS HOMENS E FIEL FILHA DE DEUS
Blandina na arena com os leões em 177, guache sobre papel, escola francesa, século XIX. Museu Histórico Nacional de Roma. Fonte: Prieur, Jean-Marc. O orgulho do martírio. História viva, p. 49.
Cheia da força de Deus, respondeu: — Sou cristã, e entre nós não se pratica mal algum. Os verdugos chegaram a revezar-se para arrancar-lhe qualquer confissão, mas foi tudo em vão. E os cristãos, admirados com tão grande força de alma numa menina e com tanta grandeza moral numa simples serva, reconheceram nela a porta-voz do próprio Mestre “para quem é grande honra aquilo que os homens têm como desprezível e que leva mais em conta o poder do amor do que as vãs aparências”.[1]
“Aquele que ama a sua vida, a perderá; entretanto, aquele que odeia sua vida neste mundo, a preservará para a vida eterna”. João 12.25. A mensagem da história de Blandina, a fiel discípula de Cristo é a de não se apegar à essa vida que é passageira e ilusória. O conselho bíblico de pensar nas coisas de cima refere-se à perenidade do que é eterno. Salvos por Cristo perderemos essa vida atribulada, que se degrada e é temporária, para ganharmos uma vida celestial eterna, o que é infinitamente melhor.
Em 177, em Lion, ocorreu uma perseguição que se constituiu em uma das páginas mais tristes e ao mesmo tempo mais sublimes da história do cristianismo primitivo quando aproximadamente cinquenta cristãos foram martirizados sem, contudo, negar sua fé.
Por ocasião de uma festa que coincidiu com uma feira popular, quando se formou um grande ajuntamento, a população excitada pela expectativa dos jogos deteve alguns cristãos, maltratou-os e denunciou-os às autoridades que, cedendo à pressão da multidão, iniciaram o processo.
O governador foi orientado pelo imperador a obedecer à lei de Trajano. Então, foram presos alguns notáveis cristãos, acusados de crimes imaginários, e seus servos foram presos e torturados para que confirmassem as acusações.
Foram presos também alguns pagãos, criados dos nossos, quando o governador mandou que se buscassem todos os nossos. Estes, pelas insídias de Satanás, temendo os tormentos que viam padecer os santos e forçados a isto pelos soldados, acusaram-nos falsamente de ceias canibais, de promiscuidades edípicas e de tantas outras coisas que para nós não é lícito nem dizer nem pensar, nem mesmo crer que tais coisas tenham ocorrido entre os homens.[2]
A acusação de canibalismo, era comum contra os cristãos primitivos. Mesmo parecendo algo incoerente, não é difícil entender a razão dos boatos. Os cristãos não revelavam detalhes da celebração da ceia do Senhor aos não batizados. Mas seus servos ou vizinhos podiam ouvir algo sobre comer a carne de Cristo e beber seu sangue. E o fato de ter que dar informações sob tortura não seria difícil transmitir informação equivocada.
Houve uma época de violenta perseguição contra os cristãos, segundo relato de Irineu, quando seus criados foram presos e torturados para que revelassem algum segredo de sua prática. Esses escravos não tinham nada a dizer que agradasse seus algozes, exceto que tinham ouvido de seus mestres que a comunhão divina era o corpo e o sangue de Cristo e, imaginando que era verdadeiramente carne e sangue, deram essa informação a seus inquisidores. Os torturadores assumiram, então, que essa seria uma prática cristã, que acabou sendo passada adiante.[3]
Diante da suspeita de canibalismo, a fúria da multidão, do governador e dos soldados recaiu sobre o diácono Santos, de Viena; sobre Maturo, recém-batizado; sobre Atalo, de Pérgamo, e sobre Blandina, uma jovem escrava, aos quais forçavam a confessar os crimes dos cristãos. A senhora de Blandina, também aprisionada, temia por ela, considerando-a fraca de corpo e de espírito. Mas, pelo contrário, ela se mostrou muito forte e, quando interrogada, confirmou que era cristã e que não sabia de nenhum ato errado praticado por seus irmãos na fé.
Blandina viu-se cheia de uma força tão grande que extenuava e esgotava aqueles que, em turnos e de todas as maneiras, torturavam-na desde o amanhecer até o ocaso; eles mesmos confessavam que estavam vencidos, sem nada poder fazer com ela, e se admiravam de como podia manter-se com alento estando todo seu corpo dilacerado e aberto, e atestavam que um só tipo de suplício bastaria para tirar a vida, sem necessidade de tantos e tão terríveis.[4]
Sem obter nenhuma informação da própria Blandina, conduziram-na às feras, juntamente com Atalo, Maturo e Santos, em local público, onde os cristãos substituíam os gladiadores, servindo de espetáculo aos pagãos. Maturo e Santos sofreram chicotadas, puxões das feras e foram colocados em cadeiras de ferro, tendo os corpos assados, os quais lançavam ao público um odor de carne queimada. Mas nem assim foram vencidos. Santos só repetia a mesma frase, afirmando que era cristão. Foram, portanto, finalmente sacrificados.
Blandina foi pendurada num madeiro e ficou exposta às feras, que se lançavam sobre ela. A visão dela animava os outros mártires que enxergavam, por seu intermédio, aquele que por eles havia sido crucificado. Como as feras não lhe tocaram, ela foi retirada e levada ao cárcere, sendo guardada para um outro combate. Átalo, que era um renomado romano, foi também guardado no cárcere, enquanto o governador aguardava uma resposta do imperador do que fazer em relação a ele.
Marco Aurélio declarara em seu edito que os que renegassem a fé cristã seriam absolvidos, ao passo que os demais seriam condenados. Com a chegada de uma grande festa local, o governador levou os cristãos novamente ao tribunal, como forma de teatro e de espetáculo para a multidão. Aos cidadãos romanos que não renegavam a fé mandava decapitar; os demais foram mandados às feras.
Apesar de triste, a história é sublime, segundo a narração de Eusébio:
Cristo foi grandemente glorificado naqueles que primeiramente haviam renegado e que agora, contra o que poderiam esperar os pagãos, confessavam sua fé. Estes, na verdade, eram interrogados privadamente, como para serem em seguida postos em liberdade, mas ao confessar sua fé foram sendo juntados à fila dos mártires.[5]
Atalo, mesmo sendo um cidadão romano, foi lançado novamente às feras, por decisão do governador que queria agradar à plebe. Quando ele foi posto sobre a cadeira de ferro e começou a queimar, dirigiu-se à multidão e falou: “Estais vendo! Isto é comer homens, o que estais fazendo. Nós, por outro lado, nem comemos homens, nem fazemos nada de mau”.[6]
No último dia de luta dos gladiadores, levaram novamente Blandina juntamente com Pôntico, um rapaz de 15 anos. Obrigados a jurar pelos ídolos, permaneceram firmes e até os menosprezaram. Foram, então, entregues a todo tipo de torturas para que renegassem a fé, mas não o fizeram. A jovem confortava o rapaz que, depois de sofrer muitos tormentos, foi o primeiro a morrer.
Como se fosse convidada a um banquete de bodas e não lançada às feras, Blandina resistia mesmo depois de açoites, feras e chamas; por último, foi atacada por um touro que a lançou para o alto e a matou.
Aquela jovem menina demonstrou sua lealdade a Cristo, ela entendeu o significado de ser discípula. Nessa época conturbada na qual vivemos precisamos exatamente dessa firmeza na fé, somos discípulos do mestre, salvos e regenerados por ele e, portanto, não nos conformamos a qualquer filosofia ou pensamento que não esteja coadunado com a Palavra imperecível de Deus.
Profa. Ms. Rute Salviano Almeida
Pesquisadora da História das Mulheres no Cristianismo
[1] Rops, Daniel. A igreja dos apóstolos e dos mártires, p. 178 (Citação de Eusébio de Cesária, História eclesiástica, 5, I.17).
[2] Eusébio de Cesareia. História eclesiástica, livro 5, I.14, p. 153.
[3] Roberts, Alexander; Donaldson, James (Ed.). The Ante-Nicene Fathers: Translations of the Writings of the Fathers Down to a.D. 325. New York: Charles Scribner’s sons, 1903, apud: Aquilina, Mike; Bailey, Christopher. Mothers of the Church, p. 68-69.
[4] Eusébio de Cesareia. História eclesiástica, livro 5, I.18, p. 154.
[5] Eusébio de Cesareia. História eclesiástica, 5, I.52, p. 159.
[6] Eusébio de Cesareia. História eclesiástica, 5, I.52, p. 159.
Ilustração: Ana Rita Robalo
Ana Rita Robalo é nascida no Luxemburgo em 1993. Criança e adolescente na Bélgica, jovem adulta em Portugal, casada há 5 anos e recente mãe de uma portuguezinha. Decidiu criar raízes em Portugal ao ter vindo estudar Artes em Lisboa. Fez o percurso académico de pintura, design, ilustração, finalizando com o mestrado de desenho. Trabalha como artista freelance, concretizando pedidos personalizados, aguarelas de retratos, paisagens, postais, ilustrações para livros e revistas, convites de casamentos, logos, entre outros. É uma apaixonada por ilustração, padrões e pintura a aguarela. A Natureza é a fonte da sua inspiração, obra do perfeito Criador e Artista.
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