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Aborto espontâneo – a dor física e emocional da perda gestacional

*Por Ana Rute Cavaco

Tinha 28 anos e uma bebé de 12 meses quando descobri que estava novamente grávida. A notícia foi recebida com surpresa e no momento em que vi um saco pequenino num ecrã (tela) e o que parecia ser um embrião em desenvolvimento, veio a alegria. Avizinhavam-se uns dias de férias e lá fomos nós, com uma pequenina a aprender a andar, com os dois primeiros dentes a rebentar, e o Verão mesmo a chegar. A gravidez anterior tinha sido vivida com tranquilidade, saúde, expectativa, e tudo em mim decorria com a garantia de que assim seria mais uma vez. Um mês e pouco depois, uma nova ecografia, perto das 10 semanas. Era uma sexta-feira e a semana tinha sido intensa de trabalho. Depois de pousar o doppler na minha barriga, o médico voltou a pegar no relatório ecográfico anterior e começou a rodar a cabeça e a percorrer a minha barriga, como que à procura de algo. “Eu não estou a encontrar bebé. Vejo o saco, que condiz com as semanas que diz, mas não encontro nada.”

Bom, foi como se um balde de água fria me tivesse sido despejado em cima, e nada fizesse sentido. Repeti uma eco com sonda, e com muita atenção, o médico explicou o que se estava a passar. A placenta do que teria sido uma gravidez continuava a crescer, o meu corpo continuava com sinais de existir algo, mas já não habitava ali bebé. Também me foi explicado que era algo bastante comum e que nada poderíamos fazer para o evitar. Acontecia, mesmo sem o meu corpo dar sinais de ter algo errado.

Seguiram-se dias de espera, numa tentativa natural que o meu corpo expulsasse os restos placentários. Entre casa e idas ao hospital, e um Verão com temperaturas a subir, eu não sabia muito bem o que pensar. Tinha sonhado mais de um mês com este novo bebé, mas eu mesma já tinha um bebé saudável em casa. Na família alargada, dois bebés tinham acabado de nascer, e entre a alegria de os segurar, a tristeza de albergar morte. Era isso que eu sentia: a minha barriga retinha os restos do que teria sido vida, ao mesmo tempo que os meus braços seguravam nova vida. Por esses dias, as palavras de conforto alternavam entre: “És nova, não penses nisso.“, “Deus é que sabe, descansa”, “Há mulheres que não conseguem engravidar, e tu já podes agradecer por teres uma filha”, etc.

Tudo verdade. Fiz o que pude para não parecer uma ingrata e confiar em Deus, alternando entre o desejo de querer viver mais uma bênção de Deus e a vontade de ter a fé de nele confiar. No meio, a tristeza. Uma tristeza que não se ausentava, com uma vontade de encerrar fisicamente este assunto. E alguma culpa, por não sentir que estava a confiar em Deus como deveria. Doze dias depois, era internada no hospital e faria uma curetagem, cirurgia de remoção dos restos placentares. Passaria semanas seguintes de alguma fraqueza e com a ideia de uma nova gravidez adiada por algum tempo.

Estima-se que uma em cada quatro mulheres sofrerá um aborto espontâneo ao longo da vida. Uma boa parte destas mulheres não saberá que sofreu esse aborto porque o confundirá com o período menstrual. É de facto muito comum a perda nas primeiras semanas de gravidez. Contudo, a perda gestacional pode ocorrer em qualquer fase e tenho ao meu redor mulheres que perderam filhos com 18, 20 e mais de 30 semanas de gestação. Falando com cada uma destas mulheres, identifico os sentimentos de perda, luto, dor, dúvida, solidão.

Recordo que naquela época encontrei nos Salmos muito consolo: a dor de quem navegava na perda “ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte” (Sl 23:4), a presença na solidão “O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado” (Sl 34:18) , a soberania na Criação “os teus olhos viram o meu corpo ainda informe” (Sl 139:16) e a certeza da condução no meio do meu desnorte: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará” (Sl 23:1) A cada dia que passava, renovava-se a esperança no futuro e a confiança de que Deus tudo sabe.

Meses depois, num episódio corriqueiro de uma quebra de tensão (pressão arterial) e desmaio, sei que terei abortado novamente. Este episódio, semelhante ao de um período menstrual, ficou resolvido sozinho. Soube que já não estava grávida ainda antes de saber que o estava, e a forma como vivi a dúvida foi diferente. A minha fé estava fortalecida, e o alívio de fisicamente estar tudo resolvido contribuiu para a forma de viver este momento. Não tinha eu a mais pequena ideia de que ainda teria mais três filhos e o quanto eu viria a aprender com todas essas gestações, o quanto Deus me iria ensinar acerca da sua grandeza e da minha pequenez. Sem todas essas experiências, a minha fé não teria sido moldada, enrijecida, animada. Olho para o passado com gratidão. Muita gratidão, lembrando o quanto Deus me apontou para ele e para a misericórdia de quem passa pelo mesmo.

Querida, se perdeste um bebé (ou vários) ou perdeste o sonho de ter um bebé, chora. Vai até à Bíblia e entrega a Deus as tuas dores. Só ele te pode consolar e garantir que tudo está nas suas mãos. Só o Senhor Deus te poderá trazer a segurança dos braços de um Pai que tudo sabe, tudo controla, tudo vê.

Querida, conheces alguém que está a passar por esta situação e não sabes o que fazer? Ora por essa pessoa, lamenta, chora com ela. Fica em silêncio, se te faltam as palavras, mas mostra a presença no meio da angústia. Permanecer é o verbo da amizade cristã.

Rendemo-nos, todas juntas. Na hora de perder, precisamos sentar e chorar. Talvez precisemos duvidar para aprender a confiar. Talvez tenhamos o silêncio e essa seja a melhor demonstração de companhia. E em tudo isso, lembramos que aguardamos o dia que sabemos que virá: aquele dia, naquele lugar eterno onde não haverá mais dor, lágrimas ou morte. No entretanto, faremos como Jó, entre lágrimas e dor: “O Senhor o deu, o Senhor o tomou, bendito seja o nome do Senhor”.

Obs.: Texto escrito em português de Portugal. Esta plataforma não obedece ao Novo Acordo Ortográfico e respeitas as regionalidades da Língua Portuguesa de acordo com a origem de suas autoras.

Escrito por -

Ana Rute é casada há 18 anos com o Tiago (pastor presidente da Igreja da Lapa, em Lisboa), mãe da Maria (16 anos), Marta (13 anos), Joaquim (12 anos) e do Caleb (10 anos). Tem 43 anos, nasceu e cresceu em Lisboa, Portugal. Mora nos arredores, em Oeiras, junto ao mar.

Discípulas de Jesus de diferentes denominações da fé protestante com o propósito comum de viver para a glória de Deus.
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